Derrubei o piano (8 min)
Senhores, eu aprendi a conviver com a baixa bilheteria, com
o fracasso do palco vazio, o palco nu.
Não me queixo.
O palco de costas pra mim. Vejam as cadeiras!, este silêncio
de ouro pra minha grande encenação. Um peido miserável que eu desse agora neste
teatro, seria como seu eu jogasse igual minhas forças para obter o sucesso e a
consagração.
Vejam. Vejam a minha pose! Vejam como eu mantenho ainda a
postura correta, o olhar decidido em frente, mesmo com esta plateia nem aí.
Fodam-se!
Bem pior, permaneçam costas, o que vou querer com plateia?
Sigam, sigam, fora daqui!!! Quero o palco nu. Quero este
vazio que se ajusta tão bem…
Plateia de costas, filha de Deus! Permaneça assim porque
para onde eu vou, se escalo esta tábua, este palco, se estatelo nesta cera
traiçoeira, é o que conquistei.
Podem me derrubar ou deixem-me cair, não me queixo.
Derrubem-me com a sua ausência. Ela faz bem e eu sempre
volto aqui.
Hoje, eu vim com minha melhor camisa, com a minha camisa
bonita, é seda, ãh- ãh!, e eu vim pra dizer o melhor possível esta cena final.
Apaguem. Apaguem as luzes, me deixam só e no escuro, lhes
peço!!! Por quê? Por quê?
Não se pergunta por que a um homem na sua plena expiação, na
exposição total de seu fracasso. Como se sabe, a grande, a melhor plateia é um
teatro vazio. Isso é fazer arte. E só depois se mostra. Como agora, aqui.
O meu fracasso é o meu maior trunfo, inspiração, o meu
fracasso é como se um morto me inspirasse.
O meu fracasso em todas as terras por onde andei. Nunca fui
nada, fui sempre um iniciante, um diletante, um empirista de porra nenhuma. O
que escrevi nunca trouxe pelados, um observar filosófico, sempre fiquei neste
maldito pinheiral.
Saíam agora de mim Heiurques, Morgênios e Bonattos. Ou mesmo
saía agora de mim minha mãe sem sobrenome melhor.
Sou um fracassado contra os tristes kardecs e bradei minha
cruz de pau. O meu fracasso foi nas rezas, tantas vezes tentei rezar. A minha
derrocada, como se diz, foi em dobro. Eu derrubei o piano, não o consegui
carregar.
A culpa?
Os motivos do meu fracasso vieram de várias frentes e eu
fiquei bem curvo, de joelhos, em minha claríssima falta de ostentação.
Peregrinei, fiz missão, arrisquei quando não era a hora e
quando foi a hora eu me assustei.
Assustava mesmo o meu fracasso tão abissal. Meu poema em
linha reta que vivenciei.
Levei porradas em termos de pensar. De me corrigir, de
buscar um estilo para escrever.
Eis a minha expiação. Eu que pensei ser premonitório fui um
reles estoque de editoras natimortas também.
Eu me impressionava mesmo ao ver tanta cadeira virada,
pulgas, piolhos, mulheres de apelido Tucas Velhas, nenhuma triste imagem mais
abrangente. Eu nunca seria um Pieter Brueghel porque fiquei na parte de baixo,
isolado do país. Pouco viajei, pouco sai do passado, eu me enterrei na infância
e no encosto da própria infância eu me ferrei.
O meu fracasso, o meu altar sem missa, agora eu trago pra
vocês.
“Corajosa” e “criativa” era a obra me dirão, quem sabe, um
dia. Dois. No máximo três críticos me reconhecerão como uma peça de museu.
Mas derrubei o piano também em outras direções. O meu
fracasso foi nunca ter casa, carro, prainha, ter fotografado o Cristo na Cruz.
Fui ao Rio e quase morri de calor. Fracassei. E nem era só
com cidade que eu me dava mal. Uma vez, Seu João Maria me emprestou a sineta e
pediu que eu badalasse para a entrada do colégio.
Errei. Eu bati a sineta como um sino e ele nunca mais me
convidou. Era um carinho de meu padrinho e eu o decepcionei.
Por quem os sinos dobram?
Dobram pelo meu fracasso, que é quando um homem brocha, como
se diz. Eu sou um imprestável burrego. Eu nunca dei um filho a uma mulher.
Palco nu. Plateia de costas.
Houvesse eu tido filhos e estariam eles agora aqui. Na
primeira fila. Aplaudindo, levando depois flores lá no meu camarim.
Não os tive.
O meu fracasso foi tão eficiente que cruzava em arroios,
enfrentava pororocas, e saía do outro lado sequinho da Silva. Mais inoperante
do que nunca.
Ninguém me respondia. Ninguém me “visualizava” quando o bote
eu joguei. O eixo Rio-São Paulo é foda.
Eu estou misturando vida e obra, mas o que há de se fazer?!
Eu escrevi sobre a diáspora de minha gente sem ser judeu. Eu
escrevi sobre o êxodo depois de uma derrubada de milhões pinheiros e ninguém
quis saber.
Eu não roubei os santos óleos da missa e aí já comecei mal.
Faltava em mim esta disposição. De roubar a igreja, de sacanear Jesus Cristo,
de ficar em blábláblá, Deus!
O meu fracasso é grande, não cabe numa malinha.
Levo então o meu fracasso, passo a passo, neste meu réquiem.
Hoje estou de aniversário.
Para um cara fracassado cumprir aniversário e cada vez mais
sucumbir.
Os prazos chegando, o calendário te amordaçando, é sentir já
uma falta de visão. Descrevo o meu fracasso de
chegada. O meu fracasso como diria o
Abdon Bullahud “vem escorrendo sangue”. O Abdon Bullahud comia churrasco
escorrendo sangue e era um libanês.
Fracassou também. Foi um escrivão de Fórum e nunca se casou.
Morava com os padres, onde é que já se viu?!
O que prevaleceu e que redundou nesta furada é que eu nunca
cheguei nem aos pés do Hemingway. Eu não afiaria o seu lápis. E foi nele que eu
me espelhei. Do Ulisses do Joyce tirei o humor.
Pronto. Eis a fórmula da queda. Misturar Hemingway com Joyce
e ainda ter me admirado com João Guimarães.
O meu fracasso se diz. Nem precisa me ler. O meu fracasso se
diz só pelas minhas intenções.
Eu não me canso de dizer que nunca amei do fundo da alma,
porque amado do fundo da alma eu também nunca fui.
Nasci e me negaram o batismo.
Fui ser criada por uma mãe emprestada, que me dava carinho,
mas sabia que eu não era seu.
É diferente começar a caminhada assim; a infelicidade começa
assim. Um cálice em homenagem à negra que me criou!
Mais tarde, em breve houve sua morte, fui viver com uma avó.
Uma avó que fazia a merenda pro tocador de sineta no ritmo de sino.
Eu não servi nem pra carregar uma cruz de pau para os mortos.
Na minha cidadezinha tinha um João que ia na frente dos
cortejos carregando uma cruz de pau. Era um negro centenário e ia numa
passadinha assim. O caixão logo atrás.
Trago comigo esta imagem e a frase que mais me marcou:
“carregar o piano”. A vida é carregar cruz de pau para mortos e piano para os
vivos.
Eu sonhei. Eu sonhei. Tive ilusões.
Gostava de política. Detestava era a forma de se fazer. Eu
pensava bem a política, me situava à esquerda, mas na prática era grana,
ranchinho com comida que não dava para um mês.
Nunca quis ir a Cuba. Eu quis ir a Nova Iorque, mas depois
passou.
Morei em Lisboa. Fracassei. Morei em Toulouse. Fui
confundido com um argelino e sofri a pior espécie de rejeição: o racismo por
minha feição. Eu era confundido com um sírio e sentia o olhar enviesado a
cada hora de me deslocar. No ônibus, no trem, no elevador.
Fracassei em Francês e rio em Português. Hoje eu não canso
de dizer: eu bobeei.
Não canso.
O meu fracasso, como estou dizendo, é um texto de um
porcalhão. O que eu faço em meu aniversário então não é isso? Essa porcalhada
de fazer uma expiação.
O meu fígado exposto. O meu fígado exposto aos abutres e
outras espécies de urubus que houver.
Quem comerá as vísceras de um fracassado?
O meu ritmo é bom. Eu sei. Eu sinto o calorão do estilo
quando começo a escrever e a coisa avança e eu sinto que estou a pleno pulmões.
A forma de descrever o fracasso num fluxo, deixando vir à tona o que é verdade e
mentira sem pausa para o leitor distinguir.
Escrevo em porcalhão. E sinto. E faço. Os meus melhores
textos são estes que saem num jorro e isso depois causa uma impressão de
angústia no leitor.
O piano caindo. O piano sendo muito pesado para eu poder
carregar. “Pra cima com o piano, moçada!”
Nunca conseguiria dizer.
Pra baixo com o ritmo. Eu que já escrevi de trás pra frente,
de baixo pra cima, fiz metade de um livro ineficaz.
Palíndromo. Trocadilhos. Experimentação com a palavra. Tirem
tudo isso daqui! Quem está apagando as velinhas do bolo do meu aniversário?
Sou eu quem deve soprar. Sou eu quem deve apagar esta porra
de velas e felicitações que me mandem.
Zussssssssssss!
Apaguei todas as felicitações.
Zussssssssssss!
Apaguei com toda a saúde que me desejaram e fiquei nesta
infeliz disposição para escrever sem ter uma história pra contar.
Falar de mim e de meu fracasso. De fato, não é uma boa
história. É apenas um texto espichado, mal seu gênero sei qual é.
Isso é Confissão? Ensaio ou um Conto? Não importa. É
escrita.
E meu fracasso só foi menor do que a escrita. O afeto que à
escrita sempre dediquei. Prendia-lhe um cinto de afeto em volta e seguia em
frente. O piano de arrasto.
Eu era capaz, se tivesse sucesso, de carregar até mesmo um
sino. Mas a imagem triste que se tinha era eu e meu piano de arrasto.
Arrastei o piano. O meu fracasso, caríssimos, era de uns
quantos quilos.
E a minha derrocada prometia mais. Não era ainda final. Ela
havia comprado espaço em mim como a sua maior negociata. O meu fracasso pedia
missa-só-missa, não precisava de hóstia. Eu perdera o jogo e não precisava de
acessórios.
Nada de hóstia. Nada de ecstasy ou cocaína. Era no osso do
peito e só.
Eu me desdobrava. O meu fracasso vinha em movimento, não era
estático e tinha lá a sua integridade: no mesmo ano ele se manifestava no amor,
nas decisões incompletas, menos na persevarança de escrever.
Pensava em contar com a escrita sempre que pensava no sucesso.
O meu fracasso, no entanto, era o que eu pensava do futuro.
Pensava no meu fracasso adiante. Eu era um pessimista, um
niilista em relação ao mercado, nascera com o que se chama sina da reclusão.
Nasci em Bom Jesus. Humilde e temente.
Nunca conheci ninguém na vida que fosse superior sem ser
arrogante, embora tementes a cada ação.
Eram tementes, no entanto, não
fracassavam. Como conseguiam carregar sua porção?
A questão do piano era coisa minha. Decidida pelos outros,
mas coisa minha.
O meu fracasso era pra eu comer alfafa. O “não há como”,
“impraticável”, “desculpe, não podermos atendê-lo”, eram as frases protocolares
da minha vida banal.
E cada uma destas frases mais útil ao meu arsenal. Merecia
comissão quem me derrubava. Merecia um assado da Friboi quem me renegava.
Meu fracasso tinha a saúde de uma vaca de presépio.
Vejam, eu não tive as tragédias do Nelson Rodrigues em vida
e fiquei na mão. Só na mão pedindo carona em editoras que sequer liam meus
originais.
E falei de coisas fortes: eu falei que não me batizaram por
ser filho de mãe solteira e eu me sentia depois como um porco. Um porco pagão.
Onde vai dar esta espécie de missa minha? Esta carência de
atenção?
Com o próprio lenço o padre da minha cidade limpava o
fundinho do cálice. Eu conheci um padre que fazia isso depois do vinho tomar.
Limpo o fundo do cálice da minha alma, agora, aqui. Minha
hora do Amém.
O meu fracasso, eu predizia, estava bem no fundo da minha
alma e eu precisava continuar: era o meu estilo, a forma com que inventei de me
expressar.
Nunca abri mão disso. Era o meu constante pano pra limpeza
geral. Nunca desisti.
Tenho ciúme do meu fracasso, porque ele me impulsionou.
14.02.2016
Nota da imagem: Pintura do genial Iberê Camargo.
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