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Em cena, na tela grande (9 min)

by - maio 01, 2016






Minha mãe tinha um daqueles relógios-cuco de um e noventa e nove, uma coisa que parecia ter saído de uma viagem ruim de LSD.

Ninguém sabia mexer naquela merda, parecia ter vida própria, batia contra a porta da casinha florida a cada duas horas como uma britadeira. Cuco esquizofrênico me acordava toda noite, eu conto sono como quem conta cacos de vidro.
Quando você fica tempo demais sem fazer absolutamente nada, acaba esquecendo quando o dia começa, o sol parece demorar demais pra subir, as pernas pesadas demais na cama.
Você empurra algumas colheres de torrões redondos de açúcar que eles enfiam em caixas compridas e coloridas e chamam de cereal matinal. Tudo que você precisa pra se levantar com toda a disposição. O necessário pra um dia bom.
A Mãe passando o café quente pra garrafas térmicas, duas, uma pra mim e outra pra ela.
Tira uma xícara do armário e me serve o café esfumaçado.
O celular apita uma coisa estrondosa e florida, daqueles apitos que vem de fábrica em todo celular, ela nunca aprendeu a trocar.
Arranca a bolsa de cima da mesa em uma braçada e corre pra porta.
— Preciso ir agora, atrasada demais! — vai dizendo enquanto bate a porta.
— TRANCA A PORTA! — grita de fora.
Você nunca sabe – ela dizia – quem pode tentar te fazer mal.
     Você nunca deve reagir, ela explica.
Nunca reagir a nada.
Meto a xícara entre os dentes e sugo um gole de café.
Nunca reagir ao café.
Dá pra sentir o sono teimoso escorrer pelos dedos do pé. O truque é nunca usar meias dentro de casa.
Ainda de olhos fechados, o cheiro de café batendo nas narinas entupidas. Dá pra ouvir a porta abrir e bater devagar.
Em cena, na tela grande.
O homem abre a tampa da garrafa térmica que a Mãe deixou em cima da pia da cozinha e serve café em um copo de vidro.
Ele tem manchas de lama nas barras da calça jeans e usa um casaco comprido de veludo. Um suicídio no calor infernal que faz aqui.
Ele derrama o café no copo e a fumaça sobe por cima de seus ombros. De costas pra mim, ainda quieto, eu não sei dizer se é o café ou o homem que está queimando.
Ele se vira num giro com o copo cheio até a tampa na mão esquerda, puxa uma cadeira e se senta bem de frente pra mim.
Enxuga os lábios com o café e faz cara de quem acabou de beijar um braseiro.
Eu espero ele implodir na jaqueta de veludo.
Agora eu penso que vou ser roubado pelo ladrão mais folgado do mundo, pelo menos um pouco mais civilizado que o normal, sem toda a gritaria e aquele negócio de querer te fazer pagar um boquete pra uma 38 enferrujada.
Ele tenta outra vez com o café, sorrindo com uma sobrancelha. O cabelo penteado para trás e as sobrancelhas grossas e limpas como as minhas.
— Pai? — tento.
— Que porra de pai o que, guri. — e consegue um gole.
— Você vai roubar alguma coisa aqui?
— Só alguns minutos do seu tempo e café.
— Olha se isso for alguma coisa de igreja…
— Não vou dizer que eu não vá citar uma igreja de vez em quando — a xicara a caminho dos dentes — mas te garanto que esse não é o assunto principal.
Incoming.
Ele engole o café de uma vez e um dos três queixos treme um pouco, o estranho é que o cara não é nada gordo, mas tem esse monte de pele formando uns dois queixos a mais. O tipo de gordo “mancha no sofá”, você pode enxugar tudo aquilo, mas sempre vai ter um lembrete pra sentar em cima.
Ele enfia dois dedos no bolso da calça e tira um papel amassado de dentro.
— Eu anotei isso antes de sair de casa, caso você não tivesse uma caneta. — a bola de papel quicando na mesa até meus dedos.
— Isso é um site. — ele diz, estragando a surpresa enquanto luto com o estrago de papel. O tipo de filho da puta que grita o final do filme no meio do cinema.
— Um site?
— É
— othersideaction.com?
— Teu inglês é muito bom garoto.
Largo o papel na mesa e enfio o café goela a baixo, batendo no bolso da calça pra ver se meu celular aparecia por ali, me arrependendo de nunca ter aprendido a usar a discagem rápida nessas merdas.
O homem tira um maço de cigarros de filtro vermelho do bolso do casaco, enfia um na boca e me oferece um com um sinal.
— Eu não sei se você reparou… — comecei pegando o cigarro. — mas são dez horas da manhã e eu estou só de calça comendo essa merda aqui na minha cozinha. — enfiando a ponta do cigarro no isqueiro aceso da mão do cara. — Então se você estiver querendo me vender alguma coisa de outro mundo ou desse daqui mesmo, não é boa hora, ok? — traguei o cigarro, escorrendo aos poucos na cadeira.
— Não é bom ano pra dizer a verdade.
E já posso pensar melhor, calcular a melhor forma de enterrar essa tigela de sucrilhos no rabo dele caso se aproxime demais.
— Não estou te vendendo merda nenhuma, isso vai ser do seu interesse e nem vai te custar nada.
— E isso ai não é sucrilhos. — falou cuspindo fumaça pelo nariz.
Em cena, na grande tela. Eu tento não piscar e tenho os dois ouvidos abertos.
O homem mete uma das pernas em cima da mesa, deixa o cigarro pendurado no lábio inferior e mais uma vez eu não sei qual dos dois está queimando.
Eu tenho meu cigarro entre os dedos e um pé batendo quieto no chão para não chamar atenção. Grito sufocado.
Em cena, na grande tela.
O homem cospe a fumaça contra o sol que vem da janela enquanto olha ao redor da cozinha, os pratos sujos na pia, o fogão com duas bocas quebradas e o azulejo branco já manchado.
— Então é assim que ela anda gastando todo aquele dinheiro? — ele começa, com mais fumaça saindo dos dois, cigarro e homem. — Achei que ela ia ter um gosto melhor, toda mulher gosta de sair decorando a porra toda.
— Ela…?
— Sua querida mamãe — outro gole monstruoso de café, o cara era uma usina. — Stardust.
A maioria das pessoas só enche o copo de café até a metade, ele enchia até derramar.
— Você tem um notebook? — perguntou.
É agora que ele me assalta, pensei.
— Não.
— Que pena, isso ia ser bem mais visual com um notebook.
— Stardust?
— Stardust. — matou o copo e meteu o cigarro entre os dentes amarelos outra vez. — é o nome que ela usa no meu site.
Mamãe é uma estrela, ele diz.
Em cena, os nervos das sobrancelhas comprimidos a ponto de arrebentar, todas as pequenas células cerebrais sonolentas eletrocutando umas as outras, o café subindo feito um tsunami de lava do estômago ao peito.
A primeira ânsia de vomito. Discreta.
Do tipo que você segura na frente de uma guria bonita com bafo de merda.
— Você sabe. — ele nunca usava os dedos pra segurar o cigarro. — pornografia.
Em cena, os olhos vermelhos de sono estalados até o meio da testa, um punho fechado debaixo da mesa e um dente mordendo o interior da bochecha como quem arranca tinta de uma parede velha.
O homem no casaco de veludo, pegando fogo ou não, gato flamejante de Schrödinger. Explicando que quando “mamãe” diz que vai trabalhar na secretaria de um colégio na cidade vizinha, na verdade ela vai pra um apartamento no quinto andar de um prédio a três quilômetros dali.
Posso sentir minha boca abrindo em câmera lenta com a língua escorrendo pra fora, me preocupo com dano cerebral permanente. O ticket que comprova o quanto você se fodeu em vida pra poder bater nas portas do céu.
Em cena, na tela grande do site do homem, logo atrás das câmeras. Um labrador preto de 35 quilos lambendo em frenesi a boceta da mamãe, entupido de drogas, o cão, não mamãe. Tudo muito saudável e controlado ele diz, sem risco algum pra ambos os atores.
A entrada pro inferno é gratuita.
— O negócio com o meu site. — ele diz. — é que é tudo ao vivo.
Se o Diabo existe, ele com certeza têm câmeras de segurança espalhadas por todo o mundo, Big Brother batendo uma punheta no meio do inferno.
As palavras se atropelam no caminho e terminam em uma tragada seca na garganta, eu sempre deixo o cigarro entre os dedos.
— Agora mesmo, se você tivesse um notebook, podia confirmar por si mesmo que estou dizendo a verdade, em vez de ficar me olhando como se eu tivesse enrabado seu cachorro.
Tremeu os lábios frouxos matando o cigarro.
Jogou a bituca dentro do copo vazio de café
— Em cena, ao vivo, nesse exato momento, enquanto cruzo minhas mãos em cima da sua mesa e te peço mais um café. — disse, pegando a garrafa e outro copo limpo. — “mamãe” está em um gangbangcom 4 mehicanos superamigos.
Em cena, ele diz. “Mamãe” bebe 2 litros de Coca-Cola antes de começar uma nova tomada. Na tela grande, um garoto de 18 anos e braços finos, ajoelhado, vendado. Mamãe veste só uma saia de couro preto, os peitos grandes lutando pela primeira vez na vida com a gravidade. As pequenas rugas nos cantos dos olhos escondidas debaixo de toda a maquiagem prateada.
Em cena, na tela grande, ele diz. Especial de quinta feira passada. Mamãe despeja um chuveiro dourado na boca do garoto, escorrendo pelo queixo abaixo até o peito, pintando o peito magrelo e branco do garoto de amarelo escuro.
Você pensaria em frango com açafrão.
— A gente usa Coca-Cola pra dar uma melhorada na cor do mijo. — ele diz. — Esses caras não gostam de mijo aguado.
E ali está mommy, de pé, com a saia de couro, refletindo as luzes do cenário, levantada contra o umbigo na frente da cara do garoto, andando em volta dos ombros do magrelo, cobrindo tudo de amarelo.
O garoto molha a venda tentando lamber os ombros.
— Você não ia acreditar no trabalho que dá pra limpar aquela maldita saia, esses pervertidos tem alguma coisa com couro preto, é tão essencial quanto o mijo cor de farmácia.
Eles desligam o ar condicionado horas antes pro clima não estragar a temperatura agradável do mijo.
A língua rosada tremendo enquanto desliza pelo ombro esquerdo.
De boca aberta como um católico esperando a hóstia.
Aqui, ele diz.
— Ela mente pra você.
— Não tinha reparado ainda. — me levantando, procurando enfiar a cara pra fora da janela mais próxima, a cozinha toda é cinza da fumaça do cigarro, da fumaça do homem. — Porque você tá me contando essa merda toda seu filho da mãe?
— Eu sou só o diretor, guri. A estrela é mamãe Stardust. — molhou os dentes de preto outra vez. — eu sou um grande apreciador da verdade.
— E outra verdade é que ela está deixando meu site pra ir pra uma companhia maior, legit sabe?
— Isso é pra ser melhor?  — os dentes virando pó dentro da boca com as rangidas do maxilar.
Em cena, o diretor trocou o pé de cima da mesa e mexeu o cigarro pro outro lado da boca, pisca um olho seco amarelado sozinho. Na cadeira trocando os pés outra vez, ele diz que acontece mais do que se imagina.
Mães solteiras saindo pra trabalhos de meio período e voltando no fim de mês com todas as contas pagas e o novo jogo de Xbox 360 que lançaram na semana passada.
Comprando férias pro sul.
Comprando árvores de natal de dois metros e meio e perus maiores que as criancinhas da África.
Dirigindo carros ecologicamente corretos com segurança reforçada.
     Câmbio automático.
Em cena, mamãe faz uma garganta profunda em um negão de 140 quilos e um metro de cacete, e eles têm tratamento dentário completo pra família.
O maior mercado do mundo é o sexo.
Ela tem pagado minha saúde bucal com cenas de cumshots no confessionário de uma igreja.
— Nosso especialista em cenários é muito bom, um verdadeiro pró.
E plano de saúde.
E um seguro pros rins da mamãe.
Em cena, na tela grande, ao vivo. Enquanto mamãe é quase desmembrada em rede mundial, uma vitima de Átila, o Huno em stream mundial.
O diretor tira o pé de cima da mesa e finalmente tem os dois no chão. Cospe mais uma bituca em outro copo limpo e bate as mãos.
Com um pé na frente do outro e uma mão na maçaneta, ele diz que pode me mandar os trabalhos mais antigos caso eu esteja interessado, por e-mail.
Em cena, um martelo de carne na minha mão.
Na grande tela, uma mão escorrega da maçaneta e colide contra o piso vermelho.
Quando ela voltar pra casa, posso dizer que descobri que queria ser pintor.
Pintei os azulejos brancos nas paredes com famílias de gotas vermelhas.
E as linhas escuras de veludo vermelho subindo das mãos até os ombros.
O gosto de ferro do sangue na boca, muito saudável, tudo controlado.
Nada que um bom plano de saúde não resolva.
Tudo pago em porra.
Em cena, uma mão que não para de descer.
Ele dizia que ela teria engolido quase dois garrafões de 20 litros cheios de porra se juntassem tudo que enfiaram pela garganta da mulher.
Arte abstrata.
Em cena, o diretor com pedaços de cérebro grudados nos imãs de geladeira.
Eu desço a mão como o mar bate na areia em dia de maré cheia.
Duas ou três batidas de coração de intervalo pra poder observar meu trabalho.
Quando eu terminei você poderia dizer que um caminhão passou sobre a cabeça do diretor.
Picasso com um martelo de carne prateado.
Um homem sentado, de mãos vermelhas.
Aposentadoria forçada, pra todos os casos.
Ninguém chama mamãe de puta.












Nota da imagem: Fotografia de Michael Donovan.


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