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Aqueles Olhos (6 min)

by - junho 19, 2016






A mão do carrasco girou a chave.

A eletricidade percorreu seu corpo, indo de ponto sensível a ponto sensível, onde estavam afixados os fios. A dor seria insuportável, se houvesse a opção de não suportá-la. Mas não conseguia gritar. Convulsionava. Espumava.
A luz piscou. A chave foi girada no sentido contrário e ele tombou inerte.
O estado em que estava – as unhas arrancadas, os dentes quebrados, os testículos esmagados, urinava sangue, já não enxergava de um olho – será que não percebiam que ele não tinha mais nada a dizer?
Falara tudo o que sabia. Nomes de amigos, conhecidos, familiares distantes. Dissera até coisas que não sabia. Confirmara tudo que lhe haviam questionado. Inventara coisas para que a dor parasse.
Mas eles não se convenciam. Sempre achavam que ele sabia mais.
– E então, quer falar?
Ele tentou balbuciar uma resposta.
E a mão do carrasco girou a chave.
De novo.
. . .
– Bicha subversiva… olha como chora!
– E fanático, ainda por cima. Não preza a saúde da tua mãe, rapaz?
– É o seguinte, lixo. Tu tem até a próxima entrevista pra dizer o que a gente quer saber. Se não disser, nós vamos atrás da tua velha. E tudo o que fizemos contigo, e coisa pior, vamos fazer com ela, na tua frente.
Ele só chorou. Não tinha mais raiva pra sentir. Não tinha mais o que dizer. Não conseguia mais inventar. Não adiantava falar que nada mais tinham a minerar ali.
Os outros dois o jogaram na cela. Não conhecia seus rostos. Eram dois capuzes negros com ternos embaixo. Dois homens sem nome. Sem coração.
Na cela, pensou no suicídio. Mas como? Não havia com o que fazer isso ali. Nada. Apenas pedra e laje nua e seu corpo semi-destruído.
Pensou na mãe. Em seu rosto sorridente e gentil. Nas lembranças queridas ao lado dela. Chorou alto.
– Cala a boca aí ou a gente vai fazer calar! – gritou uma voz do fundo do corredor.
E ele mordeu os lábios feridos e gemeu.
. . .
Não havia luz nem água nas celas. E estava escuro como breu quando ele chegou. Mas o prisioneiro abriu os olhos e imaginou ver uma porta se abrindo e se fechando. Não a porta da cela. Outra.
A figura acendeu um cachimbo com o dedo. Na luz dele, o prisioneiro pôde ver seu rosto.
– Boa noite – disse o estranho.
Era baixo, limpo e bonito. Tinha um aspecto asseado e nobre. Diferente de todo o mundo que trabalhava ali. O que era aquilo? Alguma nova e sofisticada espécie de tormento?
– Não tenha medo – repetiu o estranho, como se adivinhasse seus pensamentos – Não vim para aumentar a sua dor. Vim para acabar com ela. Você quer?
Surpreso, ele percebeu que tinha forças pra falar. E falar quase direito. Como se a língua e os lábios não estivessem cortados e os dentes partidos.
– Eu… eu quero… o que eu tenho que fazer?
– É bom que tenha perguntado. Vamos conversar um pouco antes. Fica tranquilo que ninguém vai nos ouvir. Sabe quem eu sou?
– Não.
- Sim. Você sabe. Hoje você é um ateu. Mas eu sei que foi educado como um bom católico. Sua mãe assegurou isso. Você sabe quem vem em socorro dos homens próximos do martírio, prometendo alívio para suas dores, e talvez até algo melhor.
– Não entendo.
– Entende, sim. Logo, logo, vai admitir que entende. Então, vamos aos fatos: eu te ofereço uma saída livre daqui.
– E a minha… a minha…
– Eles não terão motivo para ir atrás dela. Prometo.
– Mas o que você quer… que eu faça?
– Apenas que você aceite os meus serviços. Te conduzo para fora daqui, em segurança e esquecido por eles. E talvez um dia, em retribuição, você me sirva, se quiser. Então garanto que não terá que passar por tudo que passou aqui novamente.
– Quem é você… pra ter esse poder?
– Estes homens aqui são meus servos. São servos do Estado, não são? Meus são todos os Estados. Todos os reinos deste mundo são meus.
O prisioneiro apavorou-se com a resposta e o sorriso.
E compreendeu.
– Mas…
– Não há muito tempo para pensar. Dentro de alguns minutos eles vão acordar, vir aqui e brincar com você mais um pouco. Depois disso você sabe de quem eles vão atrás.
A luz começava a surgir no corredor. O prisioneiro sabia que isso era um sinal de que eles logo vinham. Olhou para o estranho com um ar de súplica e estendeu a mão.
– Não. Você tem que dizer.
– Me tira daqui!
– Aceita meus termos?
– Aceito!
O estranho o pegou no colo, carinhosamente. E ele adormeceu. Não sonhou. Foi um abençoado oceano negro de escuridão e esquecimento.
. . .
Então ele acordou.
Deu um pulo da cama.
Estava curado. De todas as feridas e cicatrizes. Não havia mais dor. Quase não havia a lembrança dela. Mas ele não reconhecia o local. Aquele não era o seu quarto. Era o quarto de outra pessoa.
E aquelas não eram suas mãos.
Havia um espelho na penteadeira ao lado: aquele não era seu rosto.
Uma mulher dormia ao seu lado.
Confuso, ouviu um barulho de chiado no corredor. Algo fervia. Ou fritava.
O estranho o esperava ali. Uma chaleira fervia num fogão desligado. Havia pó de café no filtro pronto para ser passado. E pão branco. E frutas frescas na mesa. Ele não lembrava da última vez que comera coisas assim.
– Gostou da nova casa?
– O que aconteceu?
– Feliz aniversário. Você nasceu de novo hoje.
O estranho apontou com a mão para um jornal sobre a mesa. Havia uma notícia pequena sobre um prisioneiro que se suicidara.
– No mundo deles, você morreu. Seria difícil tirá-lo de lá de outra forma. Mas, na verdade, o homem que morava nesta casa morreu no seu lugar. Mas ninguém vai saber. A esposa dele agora é sua esposa. Acho que vai gostar dela. Ele tem um casal de filhos também. Talvez você seja para eles um pai melhor que o antigo. Quem sabe? Agora eu vou indo.
– Espera… me explica essa história… eu causei a morte de uma pessoa quando aceitei…?
– De uma não. De várias. As informações que deu aos torturadores foram muito úteis. Por isso eles não deixavam você em paz. Não se perturbe com isso aqui. Esse daqui morreu em paz. E permitiu que você vivesse. E sua mãe está viva e não será incomodada. Bom dia.
E desapareceu.
. . .
Os dias se passaram.
Ele descobriu que gostava de sua esposa. Carinhosa e prestativa. E seus filhos eram bonitos e inteligentes. Tinha um emprego num escritório, numa função que, apesar dos detalhes, era simples. Aprendeu a lidar com o serviço que esperavam dele por imitação e repetição e nem se preocupou em aprender o significado do que fazia.
Tudo simples.
Tranquilo.
Feliz.
De vez em quando pensava na mãe com saudade e tristeza. Mas também alívio. Soubera que ela estava bem, apesar da notícia do filho morto. Estava tudo muito bem.
. . .
Assistia novela com a esposa e os filhos na sala. Abraçados no sofá.
O telefone tocou. Não era comum tocar naquela horário. A mulher ficou tensa na mesma hora. Ele se levantou e tirou o fone do gancho.
– Sim?
– Tamo passando pra te pegar. Encomenda nova.
A voz era de um dos colegas de trabalhou. Mas não entendeu o significado daquilo. O colega desligou no instante seguinte.
– Quem era, amor?
– Acho que engano.
Sentou-se no sofá. Acabrunhado. Minutos depois uma buzina soou lá fora. A família o olhou, esperando uma atitude já conhecida dele. Sem dizer palavra ele foi até a entrada, cruzou a porta. Um carro que não conhecia estava parado em frente ao portão. O vidro baixou e o rosto do colega apareceu.
– Vai ficar aí a noite toda? Vamos!
Sem nem se despedir da família, como se obedecesse a um segundo comando, invisível, ele cruzou o jardim e entrou no carro. Rodaram por algumas horas sem rumo, como se despistassem alguém. Pararam em frente a um lugar que ele conhecia.
Desceram do veículo, entraram pela porta dos fundos e foram até uma saleta onde havia café instantâneo sobre a mesinha, uma pia e um fogareiro. Um espelhinho na parede e um banheirinho ao lado.
Dois capuzes pretos também sobre a mesinha. O colega colocou um.
Aqueles olhos!
Ele apanhou o outro e seguiu-o. Era surreal demais. Mesmo para a situação que vivia. Era como se seus pés não pisassem na realidade.
– O que é que tá fazendo? Põe a capuz!
Ele colocou. Se olhou no espelhinho.
Aqueles olhos!
Pelo corredor foi até a sala de interrogatório com o colega. Um homem estava na cadeira, nu. Arfava de pavor e expectativa. Podia ver que nada além de umas pancadas fora realizado nele. Provavelmente já se julgava na pior situação do mundo. Mal sabia o que viria. O que estava prestes a acontecer.
– Você é quem sabe – disse a voz do estranho no seu ouvido, enquanto o colega fixava os fios – Se não quiser, não é obrigado. Podemos desfazer tudo isso. E você volta para onde estava.
A mão do carrasco girou a chave.













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